terça-feira, 16 de abril de 2024

Magos e Egito

Esse final de semana eu fui no evento de inauguração da Casa da Vida aqui em São Paulo. Não se preocupem, os ardilosos feiticeiros do deserto não conseguiram me seduzir e continuo tão romano quanto antes. Não por incompetência deles, os magos da Casa da Vida são muito bons nesse lance de feitiçaria e convencimento, fizeram um ótimo evento, bons brindes e tudo muito divertido... mas a missão era difícil: tenho interesse bem próximo de zero no Egito Antigo.

Até tenho algum interesse nos conflitos do Egito a partir Império Novo: as guerras com os hititas, assírios, babilônicos, persas e a conquista por Alexandre. O Egito dos Ptolomeus já me chama mais a atenção, está mais bem situado na minha janela de interesse do mundo greco-romano, e as lutas entre os diadochi tem impacto direto na evolução da República Romana. Ou seja, algum interesse pela história do lugar quando se envolve com o mundo greco-romano e zero interesse na mitologia egípcia. Esse desinteresse no Egito se reflete na minha falta de vontade em ler as Crônicas dos Kane, até acredito que seja legal, mas devo esperar o filme.

Na realidade queria aproveitar a inauguração da Casa da Vida de São Paulo, não para expôr as minhas falhas literárias, mas para falar alguma coisa sobre essa ensolarada província romana. E por que não falar de como era vista pelos romanos a relação entre a magia e o Egito?

Zia Rashid, maga da Casa da Vida especializada no elemento Fogo

E qual é essa relação?

Em uma trend que parece bem comum, os gregos relacionavam as artes mágicas com conhecimentos que vinham de terras antigas e exóticas. Sim, bem antes da síndrome de vira-lata brasileira que acredita que tudo que vem de fora é melhor e seguindo a sabedoria bíblica que "Nenhum profeta é aceito em sua terra", para a magia ganhar confiabilidade e autoridade, ela tem que vir de algum outro lugar e ter raízes na antiguidade.

A palavra magos se refere a um (tipo de?) sacerdote do zoroatrismo na língua persa. A Pérsia se encaixa em um império antigo, distante, exótico e, na época em que temos os primeiros registros do uso de magos por um autor grego, estava em guerra com as poleis gregas. Atribuir poderes, armas e costumes sinistros aos inimigos é outra prática comum desde o início dos tempos. Quem não quer impedir que sacerdotes que sacrificam criancinhas invadam a sua terra? Ou destruir armas de destruição em massa antes que sejam utilizadas contra você?

Voltando ao assunto principal, já que os magoi vieram da Pérsia e do oriente, era natural que os vários conhecimentos ocultos e misteriosos relacionados a eles também viessem de lá. A astrologia grega tem muitas evidências de ser baseada na astrologia babilônica, Zoroastro era considerado na Grécia como sendo o primeiro mago e muitas práticas mágicas dos gregos apelavam para origens mitológicas persas ou babilônicas.

E onde entra o Egito nessa história?

Ora, o Egito também se encaixa na definição de um império antigo, exótico para os olhos gregos e com a vantagem de ser fisicamente mais próximo. Era razoavelmente mais fácil para um mercador grego ver as estátuas dos deuses com cabeças de animais, as pirâmides e os outros monumentos egípcios, que ver os zigurates da Babilônia. Pontos adicionais pela magia permear a população egípcia, dos faraós aos camponeses. Um viajante ocasional teria esse contato e histórias para contar voltando para casa.

Já em Homero temos uma amostra do resultado dessas histórias, a poção do esquecimento que Helena de Tróia coloca no vinho vem do Egito, conforme podemos ver na Odisséia:

Outro feliz parecer teve Helena, de Zeus oriunda:
deita uma droga no vaso do vinho de que se serviam,
que tira a cólera e a dor, assim como a lembrança dos males.
Quem quer que dela provasse, uma vez na cratera lançada,
não poderia chorar, pelo menos no prazo de um dia,
mesmo que o pai e a mãe cara privados da vida ali visse,
ainda que em sua presença, com o bronze-cruel, lhe matassem
o filho amado ou o irmão e que a tudo ele próprio assistisse.
Tão eficazes remédios a filha de Zeus possuía,
e salutares, presentes da esposa de Tão, Polidamna,
da terra egípcia, onde o solo frutífero gera abundantes
drogas, algumas benéficas, outras fatais nos efeitos.
Todos os homens são médicos lá, distinguindo-se muito,
pelo saber, dos demais, pois descendem da raça de Péone.

Odisseia - Livro IV, 219 - 232
tradução de Carlos Alberto Nunes

Acho que o trecho mais interessante é o estereótipo que "Todos os homens são médicos lá, distinguindo-se muito, pelo saber". Olha aí a sabedoria antiga! E mais ainda: onde está "drogas" no original é φάρμακα (fármaca). Hoje usamos no sentido coloquial a palavra derivada, fármaco, apenas para remédios, mas para o mundo grego φάρμακα tem conotações mágicas: serve tanto para os óleos, ungüentos e poções, como para o componente não material de um encantamento ou maldição. Pelo texto, eu diria que o φάρμακα que Helena está usando é uma poção feita com conhecimentos mágicos, tão mágica quanto a que Medeia usou para adormecer o dragão que guardava o Velocino de Ouro:

Com um ramo recém-cortado de zimbro embebido
numa poção, ela aspergia as drogas puras sobre seus olhos,
valendo-se de um feitiço, e o forte odor da droga por toda parte
provocou-lhe sono. A serpente reclinou a mandíbula
no próprio chão e, muito atrás, os imensos anéis
estendiam-se através da densa floresta.

Argonáuticas - Livro IV, 156 - 161
tradução de Fernando Rodrigues Junior

Mais tarde, ao derrotar o gigante Talos, Medeia é chamada de πολυφαρμάκου, "a de muitos feitiços". E Medeia é mais um elo nessa nossa conexão "egípcia", uma vez que, segundo Heródoto, o povo da Cólquida era descendente de membros do exército do Faraó Sesóstris, que se fixaram na região do rio Fásis. Não a toa Medeia era tão hábil nas artes da magia: neta do Sol, sobrinha de Circe, sacerdotisa de Trivia e descendente dos egípcios.

A aparição do Egito na Odisseia como terra de poções e homens sábios, reflete a opinião da época. Com a conquista do Egito por Alexandre e depois o estabelecimento da dinastia dos Ptolomeus essa fama fica ainda mais forte. Uma parte pelo contato maior com o mundo grego e outra parte pela fundação do templo das Musas (Μουσεῖον, ou Museu) em Alexandria por Ptolomeu Soter e seu filho, Ptolomeu Filadelfos.

Um dos objetivos do Museu era atrair os maiores sábios e ter cópias de todos os livros do mundo. Ou seja, o lugar com fama de ser repositório de sabedoria antiga agora era realmente o local com a maior concentração de sábios e efervescência intelectual do Mediterrâneo antigo. Apolônio de Rodes, o autor das Argonáuticas que citamos há pouco, foi um dos sábios a serviço do Museu de Alexandria. Para completar, os campos vinculados a magia (astrologia, medicina, botânica, alquimia, etc) faziam parte das pesquisas e discussões cultivadas lá. Juntou a fama com a realidade.

E, claro, no Egito Ptolemaico os faraós eram gregos, a classe dominante era grega e a maior parte dos sábios gregos também. Uma situação que incentivou um sincretismo agressivo entre os deuses e a magia das duas culturas. A bagunça chega em um nível que, entre os papiros mágicos que sobreviveram, é possível encontrar alguns em que o texto está em mais de uma língua (útil para dar ordens a espíritos estrangeiros) e invocando deuses gregos, egípcios, babilônicos, persas e até mesmo "Iao" o Deus único dos judeus.

Esse é o Egito que virou província romana depois da morte de Cleópatra: um caldeirão de diferentes tradições e sabedorias misturadas. Junto com a província e uma quantidade obscena de trigo, veio também a fama e tradição de magia. A fama era tão forte que várias práticas que eram de origem romana ou grega, para se vestir de autoridade, diziam ter raízes no conhecimento egípcio (diga-se de passagem, o que até hoje se faz muito).

Para fechar o artigo, um exemplo da influência egípcia na magia de Roma: por volta de 1850 próximo a Via Appia foi escavado um túmulo. Lá foram encontrados 56 chapas de chumbo com inscrições, essas chapas de chumbo são chamadas defixiones e eram utilizadas principalmente para maldições e encantamentos.

Sem muita novidade, essas tabuinhas com maldições já eram tradicionais tanto em Roma como na Grécia. Agora vem a parte interessante... o nome dos amaldiçoados eram romanos, escritos com caracteres gregos, a mesma língua em que estavam as maldições, e invocavam Cibele, uma deusa frígia incorporada ao panteão romano e Osíris, um deus egípcio. As invocações greco-egípcias estavam no coração do Império.

Nenhum comentário:

Postar um comentário