Ao contrário do que dizem por aí, o nome do mês de junho não vem de "jovens", juniores. O nome do mês é em homenagem à deusa do casamento e esposa de Júpiter: Juno.
Juno (e a sua contraparte grega, Hera), não estão entre as divindades mais queridas pelos semideuses do Riordanverso. Digamos que o fato dela ser a grande antagonista do mais famoso herói mitológico, Hércules, não faz com que ela ganhe muito pontos com os outros semideuses.
Ainda mais que, em Heróis do Olimpo, fica estabelecido que Juno é uma grande mestre manipuladora. A sua antipatia pelos semideuses não evita que ela os utilize como peões para atingir os seus objetivos. Causar amnésia, criar memórias falsas, trocar pessoas de lugar, roubar meses de vida, sequestros, tudo vale para preservar a sua disfuncional família divina e a civilização ocidental.
Na hora de fazer o desenho dela a ideia foi justamente pensar algo nessa linha da madame manipuladora, algo estilo "vilã chique de novela". Para passar essa imagem fiz as sobrancelhas finas, a face simétrica, o colar de pérolas, a pele uniforme, o sorriso... não uma gargalhada louca, um sorriso.
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Juno é o retrato da elegância: colar de
pérolas, batom rosa clarinho e uma cabeça
de cabra assustadora como chapéu.
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Para fazer uma verdadeira madame de novela com nenhum respeito à vida alheia, precisa estar vestindo uma pele, né? Nesse ponto a iconografia clássica ajuda bastante, Juno é muitas vezes representada vestindo uma pele de cabra. Exatamente o que a gente queria!
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Estátua de Juno Sospita no Museu Vaticano
Foto original de Carole Radato
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Foi fácil trazer um contraste e integrar essa pele no visual da deusa: não é uma pele para ir a um baile da alta sociedade. É uma pele bárbara, de conflitos tribais e lutas por laços de sangue. As patas bem reconhecíveis e a cabeça da cabra ampliada tornam a composição bem mais selvagem, uma representação externa da brutalidade que a personificação da maternidade ideal tem dentro de si para proteger a família.
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Pronta para a batalha!
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Juno Sospita é a Juno "Salvadora", por isso vem armada de lança e escudo. No universo do Percy Jackson, o metal mágico dos Romanos é o ouro imperial, claro que as armas da deusa seriam no mínimo do metal mais nobre. No escudo uma referência a outro dos símbolos de Juno: cada uma das metades tem uma cauda de pavão estilizada.
No final o desenho ficou parecido com a descrição que consta em O Filho de Netuno:
E, então, para deixar o dia mais estranho ainda, a velha começou a brilhar e a mudar de forma. Ela cresceu até se tornar uma deusa reluzente de mais de dois metros de altura, usando um vestido azul, com os ombros cobertos por um manto que parecia feito de pele de cabra. Seu rosto era severo e imponente. Em sua mão havia um cajado com uma flor de lótus no topo.
Peraí... flor de lótus? Para ser sincero, tinha esquecido completamente que a flor de lótus seria uma planta dedicada a Juno, não afeta o meu desenho, que é de um aspecto guerreiro da deusa, mas pode ser uma referência legal para ela sentada no trono ou outro momento. Resolvi dar uma pesquisada no Google para ter uma ideia desse tal cajado (acho que cetro é um termo melhor) com a flor de lótus no topo:
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Um recorte das imagens que vieram na busca por
Juno, deusa romana e flor de lótus.
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A primeira coisa que salta aos olhos é que todas as imagens com desenhos reconhecíveis de flor de lótus são modernas. É um ponto interessante... afinal, porque Juno teria como planta-símbolo uma flor que é famosa para lá do rio Indo? Não que seja impossível, os gregos e romanos tinham contato com povos bem distantes, mas uma flor dos confins do mundo faria mais sentido para uma divindade exploradora, não pra a deusa da família e do casamento.
No mesmo conjunto de imagens, existem algumas dos períodos antigo e clássico. Uma delas é a estátua da Juno Sospita que já vimos antes, sem cetro ou cajado, com a espada e escudo. Outra tem um bastão com o que parece ser uma bolinha, mas as outras duas parecem que tem sim alguma espécie de flor no topo do cetro:
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Parece mesmo que tem algum tipo de florzinha aí...
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Será que essa florzinha é a tal flor de lótus? Como sempre, tem uma pegadinha: os gregos tinham o péssimo costume de chamar de lótus (λωτός) um monte de plantas diferentes! O filósofo grego Teofrasto já havia percebido isso quando esreveu a sua História das Plantas:
Certas plantas existem sob múltiplas formas que, por assim dizer, são quase homônimas, como o lótus; dele são muitas as espécies, que se diferenciam pelas folhas, os caules, as flores e os frutos, e entre as quais está também o chamado meliloto.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção
Heródoto também descreve pelo menos dois tipos de lótus diferentes, um deles seria o comido pelos Lotófagos (velhos conhecidos de quem já leu O Ladrão de Raios):
Um promontório que avança para o mar diante (da região) dos Gindanes é habitado pelos Lotófagos, que vivem comendo unicamente o fruto do lótus. O fruto do lótus é, quanto ao tamanho, como o do lentisco, e, quanto à doçura, parecido com o fruto da palmeira. Os Lotófagos fazem também um vinho deste fruto.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção
Olha só, essa para mim é novidade! Pela descrição de Heródoto não parece que os Lotófagos comiam as flores de lótus e sim os seus frutos! Mas será que é isso mesmo? O relato de Teofrasto parece confirmar:
E do lótus a árvore toda é caracteristicamente de bom tamanho, igual ou pouco menor que a de uma pereira; ela tem uma folha recortada como a do carrasqueiro, e sua madeira é negra. dela são múltiplas as espécies, que se diferenciam pelos frutos. O fruto é do tamanho de uma fava, e amadurece, como as uvas, mudando as cores. Ele cresce, como as bagas dos mirtos, junto uns dos outros, compactamente sobre os ramos. Sendo comido, o fruto dos chamados Lotófagos é doce, saboroso, inofensivo e, ainda, bom para o ventre; mas o fruto sem caroço – pois existe também uma tal espécie – é mais saboroso, e dele fazem também um vinho. A árvore é abundante e dá muitos frutos. Ao menos dizem que o exército (em campanha) de Ofelas, quando caminhava para Cartago, dela se alimentou durante muitos dias, quando faltaram víveres.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção
Com base nas descrições dos antigos, os mortais especialistas em plantas acreditam que a árvore de lótus seria ou o caqui-loto (Diospyros lotus), que é da família dos caquis, ou uma planta da família das jujubas, a Ziziphus lotus. É, aposto que você também descobriu agora que existe uma planta chamada jujuba. E sabe qual divindade tinha uma dessas árvores de lótus sagrada plantada em frente ao seu templo? Juno? Não, Vulcano! Segundo Plínio, o Velho, essa árvore havia sido plantada pelo próprio Rômulo e era tão antiga quanto a própria cidade de Roma, estava tão firme e entranhada nas estruturas da cidade que as suas raízes chegavam até ao Fórum de César.
Até agora descobrimos um monte de coisas interessantes sobre os hábitos alimentares dos Lotófagos, a existência de uma planta chamada jujuba e que em frente ao templo de Vulcano tinha uma árvore de lótus (que provavelmente era um tipo de jujuba ou um caqui), mas nada disso ajudou com a identificação daquela florzinha no cajado de Juno com uma flor de lótus. Nesse momento de dúvida, Heródoto pode nos ajudar novamente, escrevendo sobre outro tipo de lótus:
Quando o rio está cheio e as planícies se tornam um mar, brotam na água muitos lírios, que os Egípcios chamam de lótus. E quando os colhem, secam-nos ao sol, e depois, pilando o que vem do meio do lótus, que é parecido à papoula, fazem dele pães assados no fogo. Também a raiz deste lótus é comestível e bastante doce, sendo redonda, e, quanto ao tamanho, como uma maçã.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção
Opa! Parece que estamos no caminho certo, a lótus egípcia é uma planta da família da vitória-régia, tem uma flor bonita, imponente e era conhecida por toda a região do Mediterrâneo. Na figura abaixo podemos ver um documento que reproduz vários desenhos de lótus encontrados em papiros egípcios:
A combinação de folhas de papiro com flores de lótus é bem comum na arquitetura e decoração do Egito. Além de todo um aspecto cosmológico dentro da antiga religião egípcia, essas obras representam a união dos dois reinos em um só Egito forte, já que a flor de lótus é o símbolo do Alto Egito e o papiro é o do Baixo Egito:
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Folhas de papiro intercaladas com flores de lótus
Templo de Dendur, Núbia por Chuck LaChiusa
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Já comentamos antes que a civilização egípcia é muito antiga, muito mesmo e, além de ter tido os seus momentos de expansão territorial pelo norte da África e Oriente Próximo, também exercia a sua influência através do comércio. Aliás, como vimos no post sobre a relação entre a magia greco-romana e a terra das pirâmides, até mesmo quando o Egito era derrotado os conquistadores aproveitavam para levar um pouco dessa civilização antiga com eles.
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The Grammar of Ornament: Illustrated by Examples from Various Styles of Ornament.
DK Publishing: New York, 2001.
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Com isso o tema de flor de lótus e papiro se expandiu no espaço e no tempo! Através dos gregos e fenícios influenciou os romanos, através dos persas chegou à Índia, pela Índia foi até a Tailândia, se estilizou em arabescos e mil e uma decorações.
Como o nosso foco é Juno, uma deusa romana, interessa que o mesmo padrão chegou à Itália, como podemos ver nesse fragmento do Fórum de Augusto:
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O onipresente tema de papiro (Palmette) e flor
(Anthemion) no Forum Augusti em Roma.
Foto de Roger Ulrich
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Finalmente podemos confirmar que o cálice estilizado da flor de lótus que aparece nesses relevos e pinturas é o mesmo tipo de flor que aparece no cetro da rainha dos deuses! Apesar de não parecer nem um pouco com o que pensamos quando ouvimos falar de "Flor de Lótus", a tal florzinha realmente é uma!
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Cerâmica com Hera (a versão grega de Juno) e Prometeu.
No zoom, o detalhe da flor no topo do cetro.
ArchaiOptix, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
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Ok, agora que está tudo confirmado e realmente a flor no cetro de Juno é uma lótus, fica a dúvida para os artistas: vale a pena representar no desenho uma planta que ninguém reconhece ou é melhor perpetuar o erro e colocar uma lótus indiana igual todas as outras imagens fazem? Ainda bem que resolvi usar a lança...