quinta-feira, 16 de maio de 2024

Entre Vivos e Mortos

Faz pouco tempo publicamos um post sobre magia, com um foco mais direcionado à relação da magia com o Egito no mundo greco-romano. E, no meio das pesquisas para escrever aquele post, uma coisa que se destacou foi o entrelaçamento da magia com o mundo dos mortos. Esse entrelaçamento não se dava apenas na magia, mas também na prática religiosa oficial de Roma.

A religião em Roma era razoavelmente complexa, havia muitas atividades e rituais religiosos e cada um deles deveria ser realizado pela "pessoa" e do jeito corretos. Alguns rituais eram realizados pelos flamines, os sacerdotes pagos pelo tesouro de Roma, outros pelas Vestais, as virgens que mantinham o fogo eterno de Vesta, outros ainda pelas autoridades da República ou das Legiões, mais uns por diversos grupos de sacerdotes e religiosos como os Sálios, os Arvais, os Tícios, etc. Sobrava até alguns rituais que deveriam ser realizados no ambiente doméstico, esses principalmente pelos paterfamilias, o patriarca da família.

Lares, penates, genii, etc. O altar doméstico vivia lotado.
Original por ArchaiOptix - trabalho próprio, CC BY-SA 4.0

Fazia parte das tarefas do paterfamilias fazer o culto a vários espíritos e divindades domésticos: lares, penates, genii, etc. Sendo sincero, as definições relativas a essas entidades são bem confusas e a mitologia a respeito delas vai mudando com o tempo, lugar e fonte consultada. Para esse texto o que interessa é que algumas delas são espíritos dos ancestrais da família ou ligados diretamente àquele local (casa, cidade, Legião, etc) e que existe um culto prestado pelo paterfamilias, ligando os familiares vivos com os mortos.

Se os espíritos dos ancestrais estavam tão presentes na vida dos mortais de Roma, imagina como deve ser para os descendentes dos deuses? Os olhos de semideuses e legados podem enxergar através da Névoa, conseguem ver deuses, monstros, seres mágicos... Bom, não precisa imaginar, ao menos na visão do Rick Riordan temos uma boa descrição dessa mistura entre vivos e mortos n'O Filho de Netuno:

Para sorte de Percy, ele não tinha medo de fantasmas. Metade das pessoas no acampamento estava morta.
Guerreiros roxos translúcidos postavam-se do lado de fora do arsenal, polindo espadas etéreas. Outros passavam o tempo diante dos alojamentos. Um garoto fantasmagórico perseguia um cachorro fantasmagórico pela rua.

Todos esses fantasmas são chamados de lares no Riordanverso e podemos ver só por esses parágrafos que tem uma certa variedade: guerreiros, crianças, cachorros... Em seguida a Hazel e o Frank explicam um pouco melhor para o Percy o que são essas presenças:

— Estou vendo coisas? — perguntou. — Ou aqueles são...
— Fantasmas? — Hazel se virou. Seus olhos eram impressionantes, como ouro quatorze quilates. — Eles são Lares. Deuses da casa.
— Deuses da casa — repetiu Percy. — Tipo menores que deuses de verdade, porém maiores que deuses do apartamento?
— São espíritos ancestrais — explicou Frank.

Ou seja, essa versão dos lares não são espíritos das coisas, ou seres que sempre foram etéreos, como os venti. Os lares a que somos apresentados são realmente fantasmas. Em algum momento foram seres vivos, morreram e, por algum motivo, seus espíritos não estão no reino de Plutão e permanecem interagindo com os vivos. Aliás, fora do reino mas ainda dentro da esfera de poder do deus dos mortos:

Cato, o fantasma, bufou.
— Todos sabemos como aquilo acabou! Nós, os Lares, lembramos bem!
Os demais fantasmas resmungaram, concordando.
Nico encostou o dedo nos lábios. De repente, todos os Lares ficaram em silêncio. Alguns pareciam alarmados, como se suas bocas tivessem sido coladas.

Nesse trecho, Nico di Angelo, filho do Senhor do Submundo, faz com que todos os lares fiquem em silêncio. Em uma situação anterior ele chega a puxar Vitellius, o lar da Quinta Coorte, pela orelha!!!

Nico, o encantador de lares e uma Mastim Infernal
Esse desenho foi feito em 2022 para o evento Geração Meio-Sangue

Os lares participam das reuniões do Senado, conversam com os legionários, ensinam técnicas, treinam os recrutas, etc. São uma presença constante dos ancestrais no Acampamento Júpiter, que é o herdeiro e mantenedor do legado de Roma, e quem melhor para ensinar o mos maiorum (o modo dos antigos) que os próprios antigos?

Na narrativa do Riordanverso a existência deles serve principalmente para materializar uma linha de continuidade entre a Roma da antiguidade e a Nova Roma dos tempos atuais. A herança familiar representada nos Legados e a presença "viva" dos antepassados cimentam o papel do Acampamento Júpiter como a "continuação" de Roma e suas tradições, um contraste bem forte com o Acampamento Meio-Sangue, que excetuando o background mitológico é praticamente desconectado do mundo grego.

Nenhum comentário:

Postar um comentário