terça-feira, 16 de julho de 2024

Se Tem Placa, Tem História

Vi esses dias no Twitter (que alguns insistem em chamar de X) uma foto de um moinho de vento e uma placa proibindo "Dom Quixote"s, na hora pensei em fazer uma que se encaixasse no universo de Percy Jackson:

Proibido Semideuses no Arco de Saint Louis
Foto: NPS Photo/Sue Ford

Se levarmos em consideração que os mortais conseguiam ver o Percy, a Annabeth e o Grover (não conseguiam ver as armas e a quimera) e o Percy acabou "explodindo" o arco, uma imagem parecida com essa realmente poderia estar circulando no Twitter do Riordanverso 🤣 !!

Para quem ficou curioso, a imagem que me inspirou foi esta aqui:

Proibido Dom Quixotes perto do Moinho

E não sei se só eu penso nisso... mas talvez Miguel de Cervantes tivesse interesses ocultos ao compilar as desventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha da maneira que fez. Diz o texto de Cervantes que a leitura de muitos livros de histórias heróicas acabou por perturbar a razão do Cavaleiro da Triste Figura, que seguindo o exemplo dos livros, resolveu sair e viver as suas próprias aventuras como cavaleiro andante, caminhando em um mundo de sonhos e lutando contra inimigos imaginários.

Ou teria sido o fidalgo alguém capaz de ver através da Névoa? O quê uma vida inteira vendo monstros e seres sobrenaturais podem fazer com a mente de um mortal? Ou seria Dom Quixote um semideus perdido, vivendo isolado e sem treinamento. Nesse caso a sua triste história sendo na realidade o relato de um mortal vendo as suas aventuras com os olhos obscurecidos pela Névoa.

Talvez a situação fosse mais complexa: Miguel de Cervantes também era um semideus, conseguia enxergar além da Névoa e sabia o tipo de atenção que os feitos de Dom Quixote poderiam atrair. Os monstros não são os únicos inimigos dos semideuses. Vale lembrar que a última pessoa morta pela Inquisição Espanhola foi já no século XIX. O que poderia acontecer com uma pessoa que, no século XVII, manifestasse poderes ou tivesse contato com seres mágicos?

O plano de escrever o livro era justamente para ocultar o nosso mundo sobrenatural dos olhos mortais. Uma obra monumental da literatura para conseguir se sobrepor às canções nas tabernas e às conversas nas praças sobre a não menos monumental batalha do Cavaleiro da Triste Figura contra trinta gigantes que assolavam os campos de La Mancha.

Além do livro reforçar os efeitos da Névoa com uma espessa camada de letras, para a sanidade dos mortais não é saudável saber que bandos de gigantes caminham pela Terra, é bem mais fácil acreditar em um senhor perturbado se atirando contra moinhos de vento...

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Juno e a Flor de Lótus

Ao contrário do que dizem por aí, o nome do mês de junho não vem de "jovens", juniores. O nome do mês é em homenagem à deusa do casamento e esposa de Júpiter: Juno.

Juno (e a sua contraparte grega, Hera), não estão entre as divindades mais queridas pelos semideuses do Riordanverso. Digamos que o fato dela ser a grande antagonista do mais famoso herói mitológico, Hércules, não faz com que ela ganhe muito pontos com os outros semideuses.

Ainda mais que, em Heróis do Olimpo, fica estabelecido que Juno é uma grande mestre manipuladora. A sua antipatia pelos semideuses não evita que ela os utilize como peões para atingir os seus objetivos. Causar amnésia, criar memórias falsas, trocar pessoas de lugar, roubar meses de vida, sequestros, tudo vale para preservar a sua disfuncional família divina e a civilização ocidental.

Na hora de fazer o desenho dela a ideia foi justamente pensar algo nessa linha da madame manipuladora, algo estilo "vilã chique de novela". Para passar essa imagem fiz as sobrancelhas finas, a face simétrica, o colar de pérolas, a pele uniforme, o sorriso... não uma gargalhada louca, um sorriso.

Juno é o retrato da elegância: colar de
pérolas, batom rosa clarinho e uma cabeça
de cabra assustadora como chapéu.

Para fazer uma verdadeira madame de novela com nenhum respeito à vida alheia, precisa estar vestindo uma pele, né? Nesse ponto a iconografia clássica ajuda bastante, Juno é muitas vezes representada vestindo uma pele de cabra. Exatamente o que a gente queria!

Estátua de Juno Sospita no Museu Vaticano
Foto original de Carole Radato

Foi fácil trazer um contraste e integrar essa pele no visual da deusa: não é uma pele para ir a um baile da alta sociedade. É uma pele bárbara, de conflitos tribais e lutas por laços de sangue. As patas bem reconhecíveis e a cabeça da cabra ampliada tornam a composição bem mais selvagem, uma representação externa da brutalidade que a personificação da maternidade ideal tem dentro de si para proteger a família.

Pronta para a batalha!

Juno Sospita é a Juno "Salvadora", por isso vem armada de lança e escudo. No universo do Percy Jackson, o metal mágico dos Romanos é o ouro imperial, claro que as armas da deusa seriam no mínimo do metal mais nobre. No escudo uma referência a outro dos símbolos de Juno: cada uma das metades tem uma cauda de pavão estilizada.

No final o desenho ficou parecido com a descrição que consta em O Filho de Netuno:

E, então, para deixar o dia mais estranho ainda, a velha começou a brilhar e a mudar de forma. Ela cresceu até se tornar uma deusa reluzente de mais de dois metros de altura, usando um vestido azul, com os ombros cobertos por um manto que parecia feito de pele de cabra. Seu rosto era severo e imponente. Em sua mão havia um cajado com uma flor de lótus no topo.

Peraí... flor de lótus? Para ser sincero, tinha esquecido completamente que a flor de lótus seria uma planta dedicada a Juno, não afeta o meu desenho, que é de um aspecto guerreiro da deusa, mas pode ser uma referência legal para ela sentada no trono ou outro momento. Resolvi dar uma pesquisada no Google para ter uma ideia desse tal cajado (acho que cetro é um termo melhor) com a flor de lótus no topo:

Um recorte das imagens que vieram na busca por
Juno, deusa romana e flor de lótus.

A primeira coisa que salta aos olhos é que todas as imagens com desenhos reconhecíveis de flor de lótus são modernas. É um ponto interessante... afinal, porque Juno teria como planta-símbolo uma flor que é famosa para lá do rio Indo? Não que seja impossível, os gregos e romanos tinham contato com povos bem distantes, mas uma flor dos confins do mundo faria mais sentido para uma divindade exploradora, não pra a deusa da família e do casamento.

No mesmo conjunto de imagens, existem algumas dos períodos antigo e clássico. Uma delas é a estátua da Juno Sospita que já vimos antes, sem cetro ou cajado, com a espada e escudo. Outra tem um bastão com o que parece ser uma bolinha, mas as outras duas parecem que tem sim alguma espécie de flor no topo do cetro:

Parece mesmo que tem algum tipo de florzinha aí...

Será que essa florzinha é a tal flor de lótus? Como sempre, tem uma pegadinha: os gregos tinham o péssimo costume de chamar de lótus (λωτός) um monte de plantas diferentes! O filósofo grego Teofrasto já havia percebido isso quando esreveu a sua História das Plantas:

Certas plantas existem sob múltiplas formas que, por assim dizer, são quase homônimas, como o lótus; dele são muitas as espécies, que se diferenciam pelas folhas, os caules, as flores e os frutos, e entre as quais está também o chamado meliloto.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção

Heródoto também descreve pelo menos dois tipos de lótus diferentes, um deles seria o comido pelos Lotófagos (velhos conhecidos de quem já leu O Ladrão de Raios):

Um promontório que avança para o mar diante (da região) dos Gindanes é habitado pelos Lotófagos, que vivem comendo unicamente o fruto do lótus. O fruto do lótus é, quanto ao tamanho, como o do lentisco, e, quanto à doçura, parecido com o fruto da palmeira. Os Lotófagos fazem também um vinho deste fruto.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção

Olha só, essa para mim é novidade! Pela descrição de Heródoto não parece que os Lotófagos comiam as flores de lótus e sim os seus frutos! Mas será que é isso mesmo? O relato de Teofrasto parece confirmar:

E do lótus a árvore toda é caracteristicamente de bom tamanho, igual ou pouco menor que a de uma pereira; ela tem uma folha recortada como a do carrasqueiro, e sua madeira é negra. dela são múltiplas as espécies, que se diferenciam pelos frutos. O fruto é do tamanho de uma fava, e amadurece, como as uvas, mudando as cores. Ele cresce, como as bagas dos mirtos, junto uns dos outros, compactamente sobre os ramos. Sendo comido, o fruto dos chamados Lotófagos é doce, saboroso, inofensivo e, ainda, bom para o ventre; mas o fruto sem caroço – pois existe também uma tal espécie – é mais saboroso, e dele fazem também um vinho. A árvore é abundante e dá muitos frutos. Ao menos dizem que o exército (em campanha) de Ofelas, quando caminhava para Cartago, dela se alimentou durante muitos dias, quando faltaram víveres.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção

Com base nas descrições dos antigos, os mortais especialistas em plantas acreditam que a árvore de lótus seria ou o caqui-loto (Diospyros lotus), que é da família dos caquis, ou uma planta da família das jujubas, a Ziziphus lotus. É, aposto que você também descobriu agora que existe uma planta chamada jujuba. E sabe qual divindade tinha uma dessas árvores de lótus sagrada plantada em frente ao seu templo? Juno? Não, Vulcano! Segundo Plínio, o Velho, essa árvore havia sido plantada pelo próprio Rômulo e era tão antiga quanto a própria cidade de Roma, estava tão firme e entranhada nas estruturas da cidade que as suas raízes chegavam até ao Fórum de César.

Até agora descobrimos um monte de coisas interessantes sobre os hábitos alimentares dos Lotófagos, a existência de uma planta chamada jujuba e que em frente ao templo de Vulcano tinha uma árvore de lótus (que provavelmente era um tipo de jujuba ou um caqui), mas nada disso ajudou com a identificação daquela florzinha no cajado de Juno com uma flor de lótus. Nesse momento de dúvida, Heródoto pode nos ajudar novamente, escrevendo sobre outro tipo de lótus:

Quando o rio está cheio e as planícies se tornam um mar, brotam na água muitos lírios, que os Egípcios chamam de lótus. E quando os colhem, secam-nos ao sol, e depois, pilando o que vem do meio do lótus, que é parecido à papoula, fazem dele pães assados no fogo. Também a raiz deste lótus é comestível e bastante doce, sendo redonda, e, quanto ao tamanho, como uma maçã.
Tradução de Teodoro Rennó Assunção

Opa! Parece que estamos no caminho certo, a lótus egípcia é uma planta da família da vitória-régia, tem uma flor bonita, imponente e era conhecida por toda a região do Mediterrâneo. Na figura abaixo podemos ver um documento que reproduz vários desenhos de lótus encontrados em papiros egípcios:

Representações de papiro e flores de lótus
Egyptian lotus motifs
The New York Public Library. (1910)

A combinação de folhas de papiro com flores de lótus é bem comum na arquitetura e decoração do Egito. Além de todo um aspecto cosmológico dentro da antiga religião egípcia, essas obras representam a união dos dois reinos em um só Egito forte, já que a flor de lótus é o símbolo do Alto Egito e o papiro é o do Baixo Egito:

Folhas de papiro intercaladas com flores de lótus
Templo de Dendur, Núbia por Chuck LaChiusa

Já comentamos antes que a civilização egípcia é muito antiga, muito mesmo e, além de ter tido os seus momentos de expansão territorial pelo norte da África e Oriente Próximo, também exercia a sua influência através do comércio. Aliás, como vimos no post sobre a relação entre a magia greco-romana e a terra das pirâmides, até mesmo quando o Egito era derrotado os conquistadores aproveitavam para levar um pouco dessa civilização antiga com eles.

The Grammar of Ornament: Illustrated by Examples from Various Styles of Ornament.
DK Publishing: New York, 2001.

Com isso o tema de flor de lótus e papiro se expandiu no espaço e no tempo! Através dos gregos e fenícios influenciou os romanos, através dos persas chegou à Índia, pela Índia foi até a Tailândia, se estilizou em arabescos e mil e uma decorações.

Como o nosso foco é Juno, uma deusa romana, interessa que o mesmo padrão chegou à Itália, como podemos ver nesse fragmento do Fórum de Augusto:

O onipresente tema de papiro (Palmette) e flor
(Anthemion) no Forum Augusti em Roma.
Foto de Roger Ulrich

Finalmente podemos confirmar que o cálice estilizado da flor de lótus que aparece nesses relevos e pinturas é o mesmo tipo de flor que aparece no cetro da rainha dos deuses! Apesar de não parecer nem um pouco com o que pensamos quando ouvimos falar de "Flor de Lótus", a tal florzinha realmente é uma!

Cerâmica com Hera (a versão grega de Juno) e Prometeu.
No zoom, o detalhe da flor no topo do cetro.
ArchaiOptix, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Ok, agora que está tudo confirmado e realmente a flor no cetro de Juno é uma lótus, fica a dúvida para os artistas: vale a pena representar no desenho uma planta que ninguém reconhece ou é melhor perpetuar o erro e colocar uma lótus indiana igual todas as outras imagens fazem? Ainda bem que resolvi usar a lança...

quinta-feira, 6 de junho de 2024

A Era de Ouro e Saturno

Quando a gente escuta Era de Ouro, normalmente somos levados a pensar em uma "Era" de coisas boas, não? Pode ser a Era de Ouro dos Quadrinhos, em que surgiram os heróis como Super-Homem, Batman, The Spirit, Capitão América; ou a Era de Ouro de Atenas, quando foi construído o Partenon e tendo a presença de cidadãos como Péricles, Sófocles, Eurípedes, Heródoto e Tucídides; ou ainda uma época mítica, em que tudo era bom e os seres humanos viviam em paz. Aliás, esse último é o significado original, referência da "Raça de Ouro" descrita por Hesíodo no poema "Os Trabalhos e os Dias":

Primeiro de ouro a raça dos homens mortais
criaram os imortais, que mantêm olímpias moradas.
Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias; nem temível
velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados,
morriam como por sono tomados; todos os bens eram
para eles: espontânea a terra nutriz fruto
trazia abundante e generoso e eles, contentes,
tranqüilos nutriam-se de seus pródigos bens.

Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer

A tal "Raça de Ouro" vivia sob o reinado de Cronos e, ao que parece, eram bem felizes: a velhice não pesava, morriam sem violência, a terra dava os frutos para eles sem esforço, etc. Na continuação do poema, com as "raças" de Prata, de Bronze, dos Heróis e de Ferro, fica evidente que Hesíodo acreditava que cada geração era pior que a anterior e o ponto mais alto da humanidade é justamente o mais antigo, quando o mundo era maravilhoso, essa seria a Era de Ouro. Só a "Raça dos Heróis" fica meio fora dessa sequência de decadência, mas ela já está fora da sequência dos metais... acho que podemos considerar como uma exceção.

Agora que já temos a ideia de Era de Ouro razoavelmente definida, vamos para a segunda parte do nosso título, vamos falar de Saturno:

É, você não lembrou errado, esse cara é o Saturno

Saturno é o titã do Tempo, mais conhecido por engolir os próprios filhos (ao contrário do que dá a entender a pintura do Goya, engoliu muitos deles inteiros) e, para os fãs de Percy Jackson, pela sua versão grega, Cronos, ser o principal vilão da saga Percy Jackson e os Olimpianos. Segundo o texto de O Mar de Monstros, Cronos é "o maligno senhor titã que queria destruir a civilização ocidental". Em O Último Olimpiano, Dioníso ajuda a definir melhor o que seria a destruição da civilização ocidental:

Sim, sim. Toda a sua civilização vai se destruir. Talvez não de imediato, mas guarde as minhas palavras: o caos dos Titãs significará o fim da civilização ocidental. Arte, leis, degustação de vinhos, música, videogames, camisas de seda, quadros de veludo preto… todas as coisas que fazem com que valha a pena viver vão desaparecer!

É, não parece muito compatível com a descrição de Era de Ouro que Hesíodo nos dá. Quíron tem uma explicação para essa discrepância:

Cronos, o Senhor dos Titãs, chamou seu reinado de Era de Ouro porque os homens viviam em inocência e livres de todo o conhecimento. Mas isso era mera propaganda. O rei Titã não se importava nada com sua espécie a não ser para servir de aperitivo, ou como fonte de entretenimento.

Os grifos nessa e na referência anterior são meus. E nesse trecho grifado Quíron deixa claro que considerava a tal Era de Ouro como mera propaganda, que é outro jeito de falar que era tudo mentira. Com isso podemos deduzir também que Cronos já tentava exercer a sua influência e conquistar novos seguidores desde os tempos mais antigos, com Hesíodo na linha de frente desse plano de marketing maligno.

Até onde sabemos, no Riordanverso a identificação de Cronos com Saturno é total e a Legião Fulminata lutou ao lado dos deuses nessa Segunda Titanomaquia, obtendo a vitória com a destruição do Trono de Poder de Saturno no Monte Otris, enquanto os deuses atravessavam os Estados Unidos em uma luta épica contra Tifão. Essa é uma história que temos apenas flashes, infelizmente ainda precisa ser contada direito pelo Tio Rick.

Mas era assim mesmo a ideia dos Romanos de Saturno? Porque fazer um festival, a Saturnália, para um monstro desses todo ano? Porque não demolir o Templo de Saturno?

Bom, como quase tudo na mitologia antiga tem mais de uma versão dependendo da referência utilizada, o que dificulta um pouco essas respostas. Mas em linhas gerais a Era de Ouro de Saturno é razoavelmente diferente e mais bem situada na história que a de Cronos, apresentada por Hesíodo.

A parte de que Saturno comia os filhos e que uma bela hora foi enganado por Ops e depois destituído por Júpiter é mais ou menos a mesma. Mas ao invés de ser preso no Tártaro por Júpiter, Saturno fugiu e chegou na Itália. No texto de Macróbio, Saturno foi recebido por Janus (sim, o deus de duas caras) em seu reino e melhorou a vida dos habitantes ensinando como cultivar a terra (por isso a "arma" de Saturno é uma foice). Virgílio ainda lembra na Eneida que Saturno instituiu leis e estatutos. Agricultura e regras de convivência são as bases da civilização antiga. Para reforçar a ligação de Saturno com a história itálica, o titã ainda é considerado pai do povo latino, através do seu filho Picus (que não foi engolido, acho que alguém aprendeu uma lição).

Esse sim parece ser uma divindade respeitável que vale a pena ter um festival dedicado. E o titã continuou vivendo de boas com os outros, aumentando a sua influência e espalhando a civilização. Nesse processo fundou as cidades de Aletrium, Anagnia, Arpinum, Atina e Ferentinum. Mas todas essas boas obras não convenceram Júpiter de que o titã havia mudado, o Senhor do Olimpo via essa expansão de bondades com uma pulga atrás da orelha: Será que Saturno iria se contentar em ser rei de homens? Será que ele não gostaria de ser rei dos deuses novamente?

Pelo sim, pelo não, Júpiter resolveu fazer uma visitinha amigável ao pai, expulsou ele do mons Saturnius, arremessou o titã para o Céu e acorrentou ele por lá, mantendo os movimentos de Saturno restritos pelas estrelas. De quebra, quando foi construído o templo de Jupiter Optimus Maximus, o nome do Mons Saturnius foi trocado para Mons Capitolinus.

Ruínas do Templo de Saturno
Imagem retirada de Temple of Saturn - Colosseum Rome Tickets

Independente da mudança de nome, o Templo de Saturno continuou no Monte Capitolino e dentro dele a estátua do titã, acorrentada. A imagem de Saturno só era desacorrentada uma vez por ano, durante a Saturnália, um dos mais marcantes festivais Romanos, quando o mundo virava "de ponta cabeça".

O festival é interessante, mas o titã acorrentado tinha impactos bem mais fortes no dia-a-dia de Roma: como foi o deus que trouxe o regime da lei para a Itália, todas as leis votadas nas assembleias e todos os decretos do Senado só passavam a valer depois do texto ser depositado no Templo de Saturno. Refletindo também o papel de Saturno na agricultura, principalmente na colheita, a "colheita" do estado romano, o tesouro da República, era armazenado no Templo, no aerarium Saturni, que era também onde ficavam Águias das Legiões. Um deus civilizatório e importante para a burocracia romana (e se tem uma coisa que Roma gostava é de tradições e burocracias)

Como que no Riordanverso o titã que trouxe a civilização para a Itália mudou de ideia e resolveu destruir tudo? Não sei. Um bom caminho para uma possível resposta é na diferença entre as versões gregas e romanas dos deuses, é canônico no universo do Percy Jackson que a diferença não é apenas de personalidade: no O Filho de Netuno Marte não lembrava da luta de Ares com Percy Jackson, Minerva tem um escopo de atuação diferente de Atena, etc.

No final, a real dúvida é: quanto os objetivos de Saturno eram os mesmos de Cronos?

sábado, 1 de junho de 2024

Grover e Polifemo

É, o mês de maio não foi o melhor aqui para o blog. Só dois posts... levando em consideração que era para ter um post por semana deu para ver que a produtividade não foi boa. Para falar a verdade até foi, fiz um monte de coisas, mas isso atrapalhou um pouco o fluxo aqui. Agora o pior, entramos no mês de junho e não estou com muitas ideias.

Maaaas, como uma das finalidades do blog é mostrar as minhas fanarts, sempre tem alguma coisinha para postar: dessa vez fiz alguns desenhos para o Desafio Artístico do Mês da Noivas no Acampamento Júpiter SP.

Para começar, o banner do desafio:

A alegria da noiva é contagiante!

E qual era o desafio? Aproveitar o Mês das Noivas e homenagear a noiva mais famosa do Riordanverso: o sátiro Grover! Valia de tudo: música, poesia, desenho, filme, cosplay, etc. Claro que eu não perdi a chance e, além do banner, participei com dois desenhos com estilos bem diferentes. O primeiro com um estilo mais engraçadinho:

A versão "boneco-palito" do Grover fugindo do Polifemo

Me divirto muito fazendo esses desenhos de "boneco-palito". Se tem uma coisa que o XKCD me ensinou é que dá para passar um bom dinamismo com esse tipo de traço. Ou seja, dá para produzir o desenho com poucos traços e contar uma história rapidinho. Se precisar de mais expressividade é só colocar rosto nos personagens (que foi o caso nesse do Grover fugindo do Polifemo).

O outro desenho fiz com um estilo completamente diferente:

Outra fuga do Grover, perseguido por um Polifemo bem mais perigoso.

A ideia nessa segunda arte era passar uma atmosfera mais pesada: um Polifemo mais monstruoso, um Grover mais assustado e uma presença mais paupável das trevas. Se a inspiração dos "bonecos-palito" foi o XKCD, a deste desenho foi "Saturno devorando um filho" do Goya:

Saturno devorando a un hijo
Francisco de Goya

Sim, visivelmente fui mais competente com os "bonecos-palito", mas fiquei feliz com o resultado do desenho mais dark. Claro que não dá nem para comparar com o desespero que passa a pintura do Goya, mas acho que consegui mostrar o Polifemo como uma ameaça real, um monstro que pode devorar o Grover agora que sabe que foi enganado!

E, da mesma maneira que fui inspirado por outros desenhos e pinturas para fazer esses de agora, o processo de escrever esse post já me deu ideias para o próximo! Hah!

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Entre Vivos e Mortos

Faz pouco tempo publicamos um post sobre magia, com um foco mais direcionado à relação da magia com o Egito no mundo greco-romano. E, no meio das pesquisas para escrever aquele post, uma coisa que se destacou foi o entrelaçamento da magia com o mundo dos mortos. Esse entrelaçamento não se dava apenas na magia, mas também na prática religiosa oficial de Roma.

A religião em Roma era razoavelmente complexa, havia muitas atividades e rituais religiosos e cada um deles deveria ser realizado pela "pessoa" e do jeito corretos. Alguns rituais eram realizados pelos flamines, os sacerdotes pagos pelo tesouro de Roma, outros pelas Vestais, as virgens que mantinham o fogo eterno de Vesta, outros ainda pelas autoridades da República ou das Legiões, mais uns por diversos grupos de sacerdotes e religiosos como os Sálios, os Arvais, os Tícios, etc. Sobrava até alguns rituais que deveriam ser realizados no ambiente doméstico, esses principalmente pelos paterfamilias, o patriarca da família.

Lares, penates, genii, etc. O altar doméstico vivia lotado.
Original por ArchaiOptix - trabalho próprio, CC BY-SA 4.0

Fazia parte das tarefas do paterfamilias fazer o culto a vários espíritos e divindades domésticos: lares, penates, genii, etc. Sendo sincero, as definições relativas a essas entidades são bem confusas e a mitologia a respeito delas vai mudando com o tempo, lugar e fonte consultada. Para esse texto o que interessa é que algumas delas são espíritos dos ancestrais da família ou ligados diretamente àquele local (casa, cidade, Legião, etc) e que existe um culto prestado pelo paterfamilias, ligando os familiares vivos com os mortos.

Se os espíritos dos ancestrais estavam tão presentes na vida dos mortais de Roma, imagina como deve ser para os descendentes dos deuses? Os olhos de semideuses e legados podem enxergar através da Névoa, conseguem ver deuses, monstros, seres mágicos... Bom, não precisa imaginar, ao menos na visão do Rick Riordan temos uma boa descrição dessa mistura entre vivos e mortos n'O Filho de Netuno:

Para sorte de Percy, ele não tinha medo de fantasmas. Metade das pessoas no acampamento estava morta.
Guerreiros roxos translúcidos postavam-se do lado de fora do arsenal, polindo espadas etéreas. Outros passavam o tempo diante dos alojamentos. Um garoto fantasmagórico perseguia um cachorro fantasmagórico pela rua.

Todos esses fantasmas são chamados de lares no Riordanverso e podemos ver só por esses parágrafos que tem uma certa variedade: guerreiros, crianças, cachorros... Em seguida a Hazel e o Frank explicam um pouco melhor para o Percy o que são essas presenças:

— Estou vendo coisas? — perguntou. — Ou aqueles são...
— Fantasmas? — Hazel se virou. Seus olhos eram impressionantes, como ouro quatorze quilates. — Eles são Lares. Deuses da casa.
— Deuses da casa — repetiu Percy. — Tipo menores que deuses de verdade, porém maiores que deuses do apartamento?
— São espíritos ancestrais — explicou Frank.

Ou seja, essa versão dos lares não são espíritos das coisas, ou seres que sempre foram etéreos, como os venti. Os lares a que somos apresentados são realmente fantasmas. Em algum momento foram seres vivos, morreram e, por algum motivo, seus espíritos não estão no reino de Plutão e permanecem interagindo com os vivos. Aliás, fora do reino mas ainda dentro da esfera de poder do deus dos mortos:

Cato, o fantasma, bufou.
— Todos sabemos como aquilo acabou! Nós, os Lares, lembramos bem!
Os demais fantasmas resmungaram, concordando.
Nico encostou o dedo nos lábios. De repente, todos os Lares ficaram em silêncio. Alguns pareciam alarmados, como se suas bocas tivessem sido coladas.

Nesse trecho, Nico di Angelo, filho do Senhor do Submundo, faz com que todos os lares fiquem em silêncio. Em uma situação anterior ele chega a puxar Vitellius, o lar da Quinta Coorte, pela orelha!!!

Nico, o encantador de lares e uma Mastim Infernal
Esse desenho foi feito em 2022 para o evento Geração Meio-Sangue

Os lares participam das reuniões do Senado, conversam com os legionários, ensinam técnicas, treinam os recrutas, etc. São uma presença constante dos ancestrais no Acampamento Júpiter, que é o herdeiro e mantenedor do legado de Roma, e quem melhor para ensinar o mos maiorum (o modo dos antigos) que os próprios antigos?

Na narrativa do Riordanverso a existência deles serve principalmente para materializar uma linha de continuidade entre a Roma da antiguidade e a Nova Roma dos tempos atuais. A herança familiar representada nos Legados e a presença "viva" dos antepassados cimentam o papel do Acampamento Júpiter como a "continuação" de Roma e suas tradições, um contraste bem forte com o Acampamento Meio-Sangue, que excetuando o background mitológico é praticamente desconectado do mundo grego.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Quer Fazer a Sua Corrida de Megalesia?

No último post mostrei o jogo que fizemos para aquecer os motores para o Megalesia Ludi: o Megalesia Circus, uma corrida para buscar o culto de Cibele lááá na Frígia e trazer para Roma. Como achei o jogo divertido, vou colocar aqui as instruções se quiser fazer o seu.

Esse é o tabuleiro do Megalesia Circus, com as cinco paradas em destaque.

A primeira parte é ter o tabuleiro e montar pelo menos cinco desafios interessantes para cada uma das bases principais: Roma, Delfos, Pessino, Cnossos e Siracusa. Aí vale a pena ou olhar a história da busca da deusa Cibele (que tem no último post), ou a história de cada lugar, ou alguma lenda ou característica associada a eles. Essa foi a lógica que segui para as provas de cada casa numerada nessa edição:

  1. Roma: no relato da busca de Cibele, a missão foi criada a partir de uma consulta aos Livros Sibilinos. Profecias costumam ser difíceis de interpretar, portanto um desafio de decifrar código pareceu bem apropriado;
  2. Delfos: Xiiii, aqui é conhecido por profecias de novo. Colocar outro desafio de código fica bem repetitivo, né? Para escapar dessa sinuca o desafio de Delfos foi um caça-palavras para identificar diversos personagens, deuses e itens relacionados a profecias;
  3. Pessino: É, aqui eu fiquei sem idéias, a cidade em si não ajuda, a principal aparição dela nas histórias é exatamente o fato do templo de Cibele ficar aqui. Usando a deusa como base, como muitos dos nomes dela são relacionados a "mãe", a prova foi identificar várias mães da Mitologia escritos em uma língua "estrangeira";
  4. Cnossos: Lar do Minotauro e do Labirinto. a prova óbvia seria algo envolvendo labirinto, né? Mas prova de labirinto dá trabalho, então fui por outro caminho. A ilha de Creta e a civilização minoana tem uma relação forte com touros, então a prova aqui foi uma palavra cruzadas para revelar qual divindade estava relacionada a cada animal;
  5. Siracusa: A ideia inicial era fazer uma espécie de Batalha Naval usando o raio de calor inventado por Arquimedes. Mas Batalha Naval tem o mesmo problema de Labirinto: dá trabalho. Arquimedes foi estabelecido no Riordanverso com o maior filho de Hefesto que já existiu. Ok, a prova foi relacionada às obras de Vulcano. Resolver anagramas com diversas coisas criadas pelo deus das forjas.

Tem o tabuleiro e tem seus desafios? Agora tem que cuidar das casas pelo caminho. Tinha feito as cores diferentes para ser fácil de diferenciar uma casa da outra e destacar um pouco do fundo bege, mas acabaram sendo úteis para outra coisa: usei as cores para separar os tipos de provas de quem caísse em uma dessas casas. Claro, não podiam ser provas difíceis iguais as das bases, a ideia é só providenciar um pouco de desafio, não deixar ninguém maluco. Caso os jogadores não conseguissem resolver o desafio, tinham que voltar uma casa. E quais eram os tipos de provas?

  • AMARELO: Provas artísticas, gravar um vídeo rápido, cantar uma música, escrever uma poesia, desenhar alguma coisa. O importante é cumprir as regras: se é para desenhar um dragão de duas cabeças, tem que lembrar um dragão e ter duas cabeças;
  • LARANJA: Provas de texto/agilidade, remover as vogais de um texto, inverter as letras, escrever de trás para frente, etc. Isso é chatinho de corrigir, vale a pena manter os textos razoavelmente curtos e depende da prova um gabarito a mão para comparar;
  • VERMELHO: Perguntas e respostas do Riordanverso. O ideal é que a pergunta seja direta e a resposta curta e simples. A pergunta não precisa ser necessariamente fácil, pode ser algo obscuro, mas a resposta precisa ser simples, nada do jogador fazer um podcast para responder.

Um ponto que eu acho importante é uniformizar a grafia dos nomes para os jogos, tem muitas provas que dependendem de como se escreve um nome. A fonte de autoridade eram os livros do Rick Riordan. Então, quando havia várias versões diferentes do mesmo mito, valia a que estivesse escrita nos livros. E nas provas de caça-palavras, cruzadinhas, traduções, etc? A grafia nos textos das provas era sempre a dos livros. Facilita para os jogadores e para quem vai corrigir.

Nas perguntas e respostas aí fica a gosto de quem aplica se vai aceitar grafias diferentes ou não. Costumo usar a regra do "deu para entender? Tá valendo!", mas sei que isso não agrada a todo mundo.

Ah! E para montar os desafios em cada casa do mapa dá para seguir dois caminhos:

  1. Um pool com problemas de cada tipo. Para cada jogador que chegar em uma casa amarela, pega um desafio artístico do pool. As provas não se repetem, mas também não tem relação com o caminho.
  2. Cada casa tem o seu problema específico. Quando o jogador chegar na casa amarela perto da ilha de Lesbos, o desafio artístico ser uma poesia. A experiência fica mais imersiva com os desafios direcionados para a posição do jogador no mapa, mas as provas se repetem sempre.

Nos jogos online que fizemos e que a ideia era jogar uma vez, usamos a estratégia 2. Inclusive porque os desafios eram aplicados em grupos separados. Apesar das provas se repetirem, um grupo não via a solução dos outros. Se for jogar presencial ou com todo mundo no mesmo grupo, acredito que jogar com a estratégia 1 seja bem mais válido e divertido.

Para andar pelas casas, pelo tamanho do mapa, não é bom usar direto um dado de seis faces (1D6), utilizaria ou 1D6/2 (joga um dado de seis lados e divide o resultado por dois e arredonda para o inteiro imediatamente acima: 1 e 2 são 1; 3 e 4 são 2,; 5 e 6 são 3) ou 1D4. Se quiser, pode usar cartas, roleta, cartela de números, dados no celular, etc. O importante é ter um jeito para os jogadores caminharem pelo mapa e que não seja previsível.

E é isso, prepare o seu mapa, monte seus desafios e divirta-se na Corrida Maluca para buscar Cibele na Frígia e trazer a Roma!

terça-feira, 30 de abril de 2024

A Corrida (Maluca) de Megalesia

No final de semana do dia 28/04 tivemos um evento do Acampamento Júpiter SP: um piquenique com treino de swordplay usando o nome do festival romano Megalesia Ludi. Os jogos de Megalesia. Esses jogos foram criados em homenagem a uma deusa "importada" da Frígia que atende por um montão de nomes diferentes: Deusa Frígia, Cibele, Mãe dos Deuses, Deusa Mãe, Grande Mãe, Magna Máter, etc. Agora, como que uma deusa lá da Frígia acaba em Roma e, ainda por cima, ganhando jogos em homenagem a ela e tals?

E por "deusa lá da Frígia acaba em Roma" entendam exatamente isso: uma delegação saiu de Roma, foi até a Frígia onde ficava o templo principal da deusa, na cidade de Pessino, pegou a imagem da deusa e um grupo de sacerdotes e trouxeram toda essa galera para Roma.

Sendo sincero, essa jornada para buscar a imagem é muito mais interessante para mim que os jogos em si. Aliás, interessante o suficiente para ser utilizado como background para fazer umas atividades online! E foi exatamente isso que fizemos: em um "esquenta" para o evento presencial, simulamos em um jogo de tabuleiro a corrida contra o tempo com as etapas da viagem para buscar Cibele.

Tabuleiro do jogo Megalesia Circus

Para os prêmios de cada etapa, já que é uma viagem por várias cidades, fiz cartões postais da Mercurius Express Delivery, um para cada uma das cinco paradas da viagem e um último para a entrada triunfal da deusa em Roma

Os cinco postais do caminho:
1. Roma, 2. Delfos, 3. Pessino, 4. Cnossos e 5. Siracusa

Claro, tomei algumas liberdades criativas com o caminho que aparece no jogo. Roma, Delfos e Pessino aparecem no registro dos historiadores romanos, mas precisava que fossem cinco bases (uma para cada dia útil da semana) e fazer um circuito de corrida, então fiz um arco entre Pessino e Roma para a viagem de volta, dei uma ajustada no tamanho de cada trecho e escolhi dois pontos com alguma relação com os livros do Rick Riordan:

  • Cnossos, na ilha de Creta: lar do Minotauro, um dos primeiros monstros que Percy Jackson enfrenta e ponto de origem do Labirinto de Dédalo; e
  • Siracusa, na ilha da Sicília: onde vivia Arquimedes, um dos maiores inventores e grande matemático dos tempos antigos. No Riordanverso é tido como o "maior filho de Hefesto que já existiu". Porque Hefesto e não Vulcano? Porque era grego. Ninguém é perfeito, né?

Mas afinal, porque a delegação romana está fazendo essa tour pelo Mediterrâneo Oriental?

O início da corrida: ROMA

Tudo começa na Segunda Guerra Púnica, o segundo grande confronto entre Roma e Cartago. Aníbal Barca saiu com suas tropas da Península Ibérica, passou pela Gália e invadiu o território italiano. Ou seja, um inimigo poderoso estava próximo de Roma e conseguindo uma série de vitórias. Ao lado de medidas bem práticas para a defesa, como reforçar as posições nas ilhas, construir novos navios de guerra e levantar novas Legiões para enfrentar o general cartaginense, o Senado decidiu consultar os Livros Sibilinos, um conjunto de textos proféticos e soluções para os problemas futuros.

A resposta que conseguiram interpretar dos livros para essa situação de um general estrangeiro, ameaçando a República com seus exércitos já em solo romano era simples: deveriam trazer a deusa Frígia para Roma. Os romanos levavam as Profecias Sibilinas muito a sério, por isso foi formada e enviada a delegação para a Frígia, para trazer a Mãe dos Deuses para viver em Roma.

Primeira parada: DELFOS

Tá, os romanos levavam a sério as Profecias Sibilinas, mas trazer uma deusa láááá da Frígia para Roma parecia uma coisa solução meio estranha para o problema. Talvez um esquema meio homeopático de combater a doença com seu igual? Enfrentar o inimigo estrangeiro com uma deusa estrangeira? Os Livros Sibilinos não poderiam estar errados, mas a interpretação sim. Para confirmar a profecia e aproveitando que era caminho mesmo, a delegação romana foi consultar o mais famoso oráculo do mundo antigo: o Oráculo de Delfos.

O Oráculo confirmou a interpretação de que o culto da Mater Deum Magna Idaea deveria ser introduzido a Roma e ainda acrescentou: o rei de Pérgamo, Átalo Sóter, poderia ajudar a conseguir esse objetivo e que deveriam garantir que quando a deusa chegasse a Roma deveriam ser recebida pelos melhores homens de Roma. Com essa resposta, o grupo romano seguiu viagem rumo a Pérgamo, para conversar com o seu aliado lá: o rei Átalo Sóter.

Metade da jornada: PESSINO

A delegação romana incluía Marco Valério Levino, que já conhecia o rei Átalo Sóter. Para falar a verdade nesse pedaço da história tem uma certa confusão: uns dizem que o rei topou de primeira entregar a deusa, outros que ele ficou enrolando mas uma chuva de pedras fez ele mudar de ideia rapidinho; uns dizem que a imagem estava bem pertinho de Pérgamo, no Monte Ida, outros que estava lá no templo de Pessino. Uns que ele mandou buscar, outros que ele guiou a delegação até lá... o que interessa é que a delegação conseguiu a imagem da deusa e uns sacerdotes para ir até Roma. Ah, já comentei que a imagem da deusa era uma pedra? Uma pedra que caiu do céu, mas uma pedra. Bom, depois de dois oráculos (os Livros Sibilinos e o de Delfos) falarem que era para levar a pedra para Roma, quem vai discutir, né?

As duas paradas da viagem de volta: CNOSSOS e SIRACUSA

O caminho de volta pelo jeito foi bem tranquilo, nenhuma das fontes fala nada a respeito. Eles estavam em cinco quinquerremes, navios grandes de guerra, um dos objetivos da escolha desses navios era justamente impressionar os outros e demonstrar o poder de Roma. Acredito que dificilmente piratas, ou até mesmo navios batedores da marinha cartaginense, iriam querer atacar esse grupo. Outro ponto para o retorno transcorrer sem maiores problemas é que perto da península Itálica os navios da República de Roma tinham razoável domínio dos mares.

Última parada: ROMA

E finalmente chegamos de volta a Roma! Trazendo a deusa Frígia e seu estranho culto para as terras da República. Ela foi bem recebida pelos maiores e mais nobres cidadãos romanos, ganhou uma procissão pela cidade e jogos foram promovidos. Posteriormente a Megalesia Ludi foi incluída no calendário de festivais e jogos romanos e, por fim, o templo de Magna Máter foi construído no monte Palatino. Uma posição de grande honra e destaque. Mais uma vez Roma prova a sua força integradora.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Magos e Egito

Esse final de semana eu fui no evento de inauguração da Casa da Vida aqui em São Paulo. Não se preocupem, os ardilosos feiticeiros do deserto não conseguiram me seduzir e continuo tão romano quanto antes. Não por incompetência deles, os magos da Casa da Vida são muito bons nesse lance de feitiçaria e convencimento, fizeram um ótimo evento, bons brindes e tudo muito divertido... mas a missão era difícil: tenho interesse bem próximo de zero no Egito Antigo.

Até tenho algum interesse nos conflitos do Egito a partir Império Novo: as guerras com os hititas, assírios, babilônicos, persas e a conquista por Alexandre. O Egito dos Ptolomeus já me chama mais a atenção, está mais bem situado na minha janela de interesse do mundo greco-romano, e as lutas entre os diadochi tem impacto direto na evolução da República Romana. Ou seja, algum interesse pela história do lugar quando se envolve com o mundo greco-romano e zero interesse na mitologia egípcia. Esse desinteresse no Egito se reflete na minha falta de vontade em ler as Crônicas dos Kane, até acredito que seja legal, mas devo esperar o filme.

Na realidade queria aproveitar a inauguração da Casa da Vida de São Paulo, não para expôr as minhas falhas literárias, mas para falar alguma coisa sobre essa ensolarada província romana. E por que não falar de como era vista pelos romanos a relação entre a magia e o Egito?

Zia Rashid, maga da Casa da Vida especializada no elemento Fogo

E qual é essa relação?

Em uma trend que parece bem comum, os gregos relacionavam as artes mágicas com conhecimentos que vinham de terras antigas e exóticas. Sim, bem antes da síndrome de vira-lata brasileira que acredita que tudo que vem de fora é melhor e seguindo a sabedoria bíblica que "Nenhum profeta é aceito em sua terra", para a magia ganhar confiabilidade e autoridade, ela tem que vir de algum outro lugar e ter raízes na antiguidade.

A palavra magos se refere a um (tipo de?) sacerdote do zoroatrismo na língua persa. A Pérsia se encaixa em um império antigo, distante, exótico e, na época em que temos os primeiros registros do uso de magos por um autor grego, estava em guerra com as poleis gregas. Atribuir poderes, armas e costumes sinistros aos inimigos é outra prática comum desde o início dos tempos. Quem não quer impedir que sacerdotes que sacrificam criancinhas invadam a sua terra? Ou destruir armas de destruição em massa antes que sejam utilizadas contra você?

Voltando ao assunto principal, já que os magoi vieram da Pérsia e do oriente, era natural que os vários conhecimentos ocultos e misteriosos relacionados a eles também viessem de lá. A astrologia grega tem muitas evidências de ser baseada na astrologia babilônica, Zoroastro era considerado na Grécia como sendo o primeiro mago e muitas práticas mágicas dos gregos apelavam para origens mitológicas persas ou babilônicas.

E onde entra o Egito nessa história?

Ora, o Egito também se encaixa na definição de um império antigo, exótico para os olhos gregos e com a vantagem de ser fisicamente mais próximo. Era razoavelmente mais fácil para um mercador grego ver as estátuas dos deuses com cabeças de animais, as pirâmides e os outros monumentos egípcios, que ver os zigurates da Babilônia. Pontos adicionais pela magia permear a população egípcia, dos faraós aos camponeses. Um viajante ocasional teria esse contato e histórias para contar voltando para casa.

Já em Homero temos uma amostra do resultado dessas histórias, a poção do esquecimento que Helena de Tróia coloca no vinho vem do Egito, conforme podemos ver na Odisséia:

Outro feliz parecer teve Helena, de Zeus oriunda:
deita uma droga no vaso do vinho de que se serviam,
que tira a cólera e a dor, assim como a lembrança dos males.
Quem quer que dela provasse, uma vez na cratera lançada,
não poderia chorar, pelo menos no prazo de um dia,
mesmo que o pai e a mãe cara privados da vida ali visse,
ainda que em sua presença, com o bronze-cruel, lhe matassem
o filho amado ou o irmão e que a tudo ele próprio assistisse.
Tão eficazes remédios a filha de Zeus possuía,
e salutares, presentes da esposa de Tão, Polidamna,
da terra egípcia, onde o solo frutífero gera abundantes
drogas, algumas benéficas, outras fatais nos efeitos.
Todos os homens são médicos lá, distinguindo-se muito,
pelo saber, dos demais, pois descendem da raça de Péone.

Odisseia - Livro IV, 219 - 232
tradução de Carlos Alberto Nunes

Acho que o trecho mais interessante é o estereótipo que "Todos os homens são médicos lá, distinguindo-se muito, pelo saber". Olha aí a sabedoria antiga! E mais ainda: onde está "drogas" no original é φάρμακα (fármaca). Hoje usamos no sentido coloquial a palavra derivada, fármaco, apenas para remédios, mas para o mundo grego φάρμακα tem conotações mágicas: serve tanto para os óleos, ungüentos e poções, como para o componente não material de um encantamento ou maldição. Pelo texto, eu diria que o φάρμακα que Helena está usando é uma poção feita com conhecimentos mágicos, tão mágica quanto a que Medeia usou para adormecer o dragão que guardava o Velocino de Ouro:

Com um ramo recém-cortado de zimbro embebido
numa poção, ela aspergia as drogas puras sobre seus olhos,
valendo-se de um feitiço, e o forte odor da droga por toda parte
provocou-lhe sono. A serpente reclinou a mandíbula
no próprio chão e, muito atrás, os imensos anéis
estendiam-se através da densa floresta.

Argonáuticas - Livro IV, 156 - 161
tradução de Fernando Rodrigues Junior

Mais tarde, ao derrotar o gigante Talos, Medeia é chamada de πολυφαρμάκου, "a de muitos feitiços". E Medeia é mais um elo nessa nossa conexão "egípcia", uma vez que, segundo Heródoto, o povo da Cólquida era descendente de membros do exército do Faraó Sesóstris, que se fixaram na região do rio Fásis. Não a toa Medeia era tão hábil nas artes da magia: neta do Sol, sobrinha de Circe, sacerdotisa de Trivia e descendente dos egípcios.

A aparição do Egito na Odisseia como terra de poções e homens sábios, reflete a opinião da época. Com a conquista do Egito por Alexandre e depois o estabelecimento da dinastia dos Ptolomeus essa fama fica ainda mais forte. Uma parte pelo contato maior com o mundo grego e outra parte pela fundação do templo das Musas (Μουσεῖον, ou Museu) em Alexandria por Ptolomeu Soter e seu filho, Ptolomeu Filadelfos.

Um dos objetivos do Museu era atrair os maiores sábios e ter cópias de todos os livros do mundo. Ou seja, o lugar com fama de ser repositório de sabedoria antiga agora era realmente o local com a maior concentração de sábios e efervescência intelectual do Mediterrâneo antigo. Apolônio de Rodes, o autor das Argonáuticas que citamos há pouco, foi um dos sábios a serviço do Museu de Alexandria. Para completar, os campos vinculados a magia (astrologia, medicina, botânica, alquimia, etc) faziam parte das pesquisas e discussões cultivadas lá. Juntou a fama com a realidade.

E, claro, no Egito Ptolemaico os faraós eram gregos, a classe dominante era grega e a maior parte dos sábios gregos também. Uma situação que incentivou um sincretismo agressivo entre os deuses e a magia das duas culturas. A bagunça chega em um nível que, entre os papiros mágicos que sobreviveram, é possível encontrar alguns em que o texto está em mais de uma língua (útil para dar ordens a espíritos estrangeiros) e invocando deuses gregos, egípcios, babilônicos, persas e até mesmo "Iao" o Deus único dos judeus.

Esse é o Egito que virou província romana depois da morte de Cleópatra: um caldeirão de diferentes tradições e sabedorias misturadas. Junto com a província e uma quantidade obscena de trigo, veio também a fama e tradição de magia. A fama era tão forte que várias práticas que eram de origem romana ou grega, para se vestir de autoridade, diziam ter raízes no conhecimento egípcio (diga-se de passagem, o que até hoje se faz muito).

Para fechar o artigo, um exemplo da influência egípcia na magia de Roma: por volta de 1850 próximo a Via Appia foi escavado um túmulo. Lá foram encontrados 56 chapas de chumbo com inscrições, essas chapas de chumbo são chamadas defixiones e eram utilizadas principalmente para maldições e encantamentos.

Sem muita novidade, essas tabuinhas com maldições já eram tradicionais tanto em Roma como na Grécia. Agora vem a parte interessante... o nome dos amaldiçoados eram romanos, escritos com caracteres gregos, a mesma língua em que estavam as maldições, e invocavam Cibele, uma deusa frígia incorporada ao panteão romano e Osíris, um deus egípcio. As invocações greco-egípcias estavam no coração do Império.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Juventa Jeebies

No livro O Cálice dos Deuses aparece o centro de diversões "Hebe Sinistra", se você achou que em português ficou meio óbvio quem é a dona do centro de diversões, não se preocupe que no original é "Hebe Jeebies", óbvio igual. Vou evitar entrar em spoilers a respeito do livro, o que interessa para esse post é que dentro desse centro de diversões tem dois pontos relacionados a Hebe:

  1. Juventude, que é o domínio da deusa e
  2. Galinhas! Que são o seu animal sagrado!

Bom, para mim parece natural que se o aspecto grego da deusa da juventude tem pelo menos um centro de diversões em Nova Iorque (será que é uma rede?), o aspecto romano também deve ter o seu, aposto que nas proximidades do Acampamento Júpiter, provavelmente em São Francisco.

Então, apresento a vocês uma amostra do Juventa Jeebies! Com fliperama, brinquedão, piscina de bolinhas, karaokê e muito mais!

Deu um trabalhão fazer esse desenho!

Usei a versão incompleta desse painel como uma das provas dos Idos de Março Sem Sangue 2024. Foi a prova mais terrível para corrigir, mas pareceu que foi uma que as pessoas mais gostaram de fazer! Se quiser brincar um pouco, basta encontrar e contar na imagem:

  • Todas as galinhas (tem um monte)
  • Todos os pintinhos (acho que são menos que as galinhas, mas são menorzinhos e se escondem melhor)
  • Todos os bebês

É um passatempo razoável para quem faz, e pavoroso para quem corrige. Ainda mais que eu não fui muito inteligente e não contei nenhum desses itens enquanto colocava eles na imagem. Agora, por que motivo as galinhas sagradas estão todas soltas? Por que tantos bebês correndo desgovernados? O que está acontecendo aí?

Juventa, sendo a deusa da juventude, se apresenta sempre como a pessoa mais nova do recinto. Não faz muito tempo Annabeth e Percy Jackson utilizaram esse hábito para fazer a deusa rejuvenescer até ser um bebê de colo e forçá-la a ajudá-los. Teria tudo para ser uma daquelas situações que ocorrem apenas uma vez, mas Grover é um boca aberta e as notícias correram pelos seres mágicos da Natureza.

As notícias tanto correram que alcançaram os faunos do Acampamento Júpiter, que viram a oportunidade de conseguir vários trocados, jogar fliperama e se entupir de pizza. Claro, para conseguir ajuda de uma ONG de defesa dos direitos dos animais, o discurso utilizado pelos faunos foi que era necessário agir para "Libertar as galinhas do cativeiro!"

E assim aconteceu. Enganados pela lábia dos faunos, os militantes da ONG invadiram o Juventa Jeebies e abriram a porta do galinheiro. Sem perder tempo as galinhas saíram correndo por todo o centro de diversões, causando um caos razoável! O final da manifestação era pegar vários dos pintinhos e levá-los para soltar no karaokê, fazendo uma instagramável onda amarela de pintinhos correndo. Por que no karaokê? Porque era lá que a dona do local ficava, indiferente aos (supostos) maus-tratos que as galinhas sofriam!

O plano deu mais ou menos certo. Uma coisa é levar um pintinho para desbalancear os poderes da deusa outra completamente diferente é soterrá-la em um mar de pintinhos!! Os poderes de Juventa se descontrolaram, transformando imediatamente todos os militantes da ONG em bebês e a aura de juventude que a deusa emite passou a atuar de maneira muito mais rápida e agressiva, rejuvenescendo várias das galinhas fugitivas em pintinhos e muitos dos clientes em bebês!

Os faunos até conseguiram os trocados e as pizzas. Jogar fliperama ficou para depois, porque a onda de juventude chegou a transformar alguns deles em cabritinhos e eles acharam melhor voltar para o Acampamento Júpiter com os resultados do saque e fingindo que não tinham nada a ver com isso. Como um deles falou quando foi interrogado pelo Pretor: "Tecnicamente não temos nada a ver com isso. Não libertamos galinhas, não espalhamos pintinhos, não postamos nada no Instagram..."

Agora a aura de juventude está descontrolada e já algumas quadras de São Francisco estão tomadas por bebês. A maior parte da Legião não pode enfrentar essa ameaça: se conseguissem atravessar a área de rejuvenescimento, quando chegassem até a porta do Juventa Jeebies os jovens legionários estariam tão mais jovens que não iriam sequer conseguir levantar o gládio. Claro que sobrou para mim, o mais velho legionário, entrar no Juventa Jeebies, desviar das galinhas assassinas sagradas, recolher todos os pintinhos e colocar os bebês em um lugar seguro, fora do karaokê. Que Fortuna esteja ao meu lado nessa missão!

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Passaram os Idos de Março, chegaram as Calendas de Abril

"Cuidado com os Idos de Março!" - esse foi o aviso para Júlio César que Shakespeare colocou na boca de um adivinho na peça que leva o nome do cônsul romano. E por que o aviso? Porque nos Idos de Março Júlio César seria assassinado. Bem que o adivinho podia falar as coisas mais claramente, né?

Diferente do que aconteceu em 44 a.C., no Acampamento Júpiter SP passamos pelos Idos de Março e nenhum dos pretores foi assassinado. Talvez pelo Senado ser mais confiável, ou pelos pretores não parecerem que querem se tornar reis, ou outro motivo qualquer. O que interessa é que atravessamos os Idos de Março sem violência. Como fazer jogos para comemorar datas especiais é uma tradição romana, durante uma semana tivemos jogos online e desafios artísticos no Acampamento Júpiter SP.

Agora vocês já sabem porque eu atrasei os posts aqui no blog. Fiquei organizando e aplicando os jogos e acabei me desorganizando com a agenda aqui. Não participei dos desafios artísticos, eram todos relativos a música, atuação e poesia, nenhum deles o meu forte. Se bem que mesmo que os desafios fossem de áreas que eu me dou bem, fazia parte da organização e não poderia participar de qualquer jeito.

Entre os prêmios para os ganhadores estavam bottons comemorativos dos Idos de Março Sem Sangue 2024, e foi neles que dediquei meus dons artísticos!

Idos de Março Sem Sangue 2024

O desenho mostra uma moeda de ouro gravada com duas adagas, as palavras EID MAR (Idos de Março) e o ano de 2024 em algarismos romanos. Não, não vou colocar a data AUC, os algarismos já são romanos o suficiente. A moeda tem manchas de sangue e, para indicar que os Idos de Março foram sem sangue, um sinal de proibido desenhado em volta. Achei que ficou bem legal e o amarelo com o sangue me lembrou um pouco o smiley de Watchmen.

Mas, além da forma redonda, de onde tirei a ideia de fazer o botton como se fosse uma moeda? Quem acha uma boa ideia fazer uma moeda comemorando um assassinato? Bom, Marcus Junius Brutus achou. Não só achou que a ideia era boa como efetivamente cunhou essas moedas!

Na frente: BRUT IMP L PLAET CEST
(Brutus Imperador - Lucius Plateorius Cestianus)
No verso: EID MAR
(Idos de Março)

Sim, Brutus fez uma moeda com a cara dele de um lado e duas adagas com "Idos de Março" do outro! Fez isso porque ele acreditava que com o assassinato de Júlio César ele estava libertando a República Romana de se tornar uma autocracia (spoiler de 2000 anos: provavelmente ele estava certo, porque pouco depois dos liberatores serem derrotados, Roma se tornou uma autocracia).

Pessoas atentas devem ter percebido que a moeda de Brutus tem uma espécie de "dedal" entre as duas adagas e o botton comemorativo não tem. Esquecimento? Não, decisão conciente. 

Esse "dedal" é a chave para a comemoração de Brutus, na realidade isso é um chapéu chamado pileus e é um dos símbolos de Libertas, a deusa que personifica a Liberdade. Um escravo romano quando liberto tinha a cabeça raspada e recebia um pileus para cobrir a cabeça, é um símbolo de liberdade.

Com essa informação a interpretação da moeda fica mais interessante: Brutus comemora que, através do assassinato de Júlio César (as adagas) nos Idos de Março (EID MAR), ele garantiu a liberdade (o pileus) de Roma.

Agora também fica fácil saber porque o botton não tem o pileus nele: não queremos assassinatos, mas queremos liberdade para todos! Então dentro do sinal de proibido ficam as duas adagas (os assassinatos) e nenhum pileus (a liberdade).

Parte do kit de prêmios para os vencedores das provas artísticas dos Jogos dos Idos de Março Sem Sangue 2024

terça-feira, 12 de março de 2024

Neptunus Redux

Não é incomum nas competições entre fãs do Riordanverso ter provas artísticas, e um dos objetivos desse blog era ter um lugar para mostrar esses desenhos. Essa arte do Netuno que está logo aí embaixo foi uma das primeiras artes que eu fiz depois que comecei a me envolver no fandom de Percy Jackson. Também é o primeiro desenho colorido que eu fiz em muuuuuito tempo.

Netuno protegendo a viagem de um navio romano

Se lembro direito, a tarefa era desenhar um deus romano. Acabei escolhendo Netuno justamente pelo jeito que é descrito o relacionamento dos romanos com Netuno em "O Filho de Netuno":

— Sinto muito, Percy — disse Hazel. — É que... os romanos sempre tiveram medo do mar. Só usavam navios se fosse necessário. Mesmo nos tempos modernos, ter um filho de Netuno por perto é mau presságio. A última vez que um ingressou na legião... bem, foi em 1906, quando o Acampamento Júpiter ficava do outro lado da baía, em São Francisco. Houve um terremoto gigantesco...
— Você está me dizendo que ele foi provocado por um filho de Netuno?
— É o que dizem. — A expressão de Hazel era de remorso. — Enfim... Os romanos temem Netuno, mas não o amam muito.

Ou então:

— Um barco! — Octavian virou-se para os senadores. — O filho de Netuno quer um barco. Viajar por mar nunca foi do feitio dos romanos, mas ele não é muito romano!

Ok, o Rick escreve assim para dar um certo choque nos leitores, acostumados com o prestígio do filho de Poseidon no Acampamento Meio-Sangue, e trazer uns pontos de antagonismo para fazer a história andar. Mas era assim mesmo? Viajar por mar não era do feitio dos romanos? Só usavam navios se fosse necessário?

É, esse é mais um daqueles pontos em que a ficção se distancia do que a gente conhece da história. Tá, a República Romana no começo não era muito chegada em navios, quando precisava de alguns emprestava ou contratava os serviços dos povos latinos ou dos gregos, e isso funcionava bem. Mas na época da Primeira Guerra Púnica a situação mudou um pouco e a República montou uma esquadra com mais de 200 navios e foi atacar Cartago!

Mesmo sendo novatos na arte das batalhas navais, a marinha romana não fez feio na Primeira Guerra Púnica, vencendo os cartaginenses várias vezes. O feito fica mais impressionante se lembrarmos que Cartago era uma potência marítima e os romanos tinham acabado de aprender a fazer seus navios!

Mas sabe o que foi terrível para a esquadra romana durante essa guerra? Tempestades. Perderam quase todos os navios para uma tempestade em 255 aC. e de novo em 253 aC. Em uma dessas tempestades, mais de 100 mil romanos perderam a vida. É o tipo de coisa que gera um certo trauma. E quem os romanos achavam que poderia proteger os marinheiros das tempestades no mar? Se você respondeu Netuno, acertou. Então sim, os romanos temiam Netuno e agradeciam a ele quando os seus entes queridos retornavam com vida depois de uma jornada pelo mar. Esse é o Neptunus Redux (ou Neptunus Reduci), o Netuno que trás de volta o navegante.

A medida que o tempo passou e a República conquistou novas terras, o transporte marítimo se tornou essencial: tropas, tecidos, azeite, ferro, toda sorte de mercadorias e, principalmente, o suprimento de grãos de Roma iam e vinham em navios pelo Mar Mediterrâneo, que era o caminho mais curto entre Roma e as suas províncias. A última grande ameaça ao domínio romano do Mediterrâneo foi uma epidemia de "piratas", que acabou sendo resolvida em 67 aC. por Pompeu Magno, que era devoto de Netuno, comandando uma esquadra com mais de 500 navios e 120 mil homens armados.

A pirataria não deixou de existir depois da vitória de Pompeu, encontrar bandidos no mar ainda podia ser um problema para alguns viajantes azarados, mas não era mais uma ameaça a República (e depois ao Império). Definitivamente, os romanos viajavam e dominavam o mar.

Sobraram as tempestades, que não podiam ser enfrentadas pela força das legiões ou da marinha romana. Esse não era um trabalho para os mortais. Neptunus Redux

Moeda do Imperador Vespasiano, por volta do ano 70 dC, no verso a imagem de Netuno, marcada como NEPtunus REDux
(imagem extraída de Colonial Coins and Medals)